sábado, 7 de junho de 2008

O meu homem sempre me deu tudo....

“… tínhamos duas boas casas, com tudo do melhor. Viajávamos imenso, os miúdos estavam em boas escolas. Oferecia-me muitas jóias, escolheu-me um óptimo carro. Até um barco ele chegou a comprar….
O meu homem dava-me tudo. Mesmo tudo…. Mas sobretudo dava-me porrada.
Eu lá ia disfarçando as marcas negras com maquilhagem mas as feridas da alma, essas, não se cobrem com pós. O meu tormento durou 29 anos. Tive dois filhos com aquele homem- dois filhos que ele nunca respeitou. Aliás, na segunda gravidez ele deu-me imensas tareias e atirava-me frequentemente ao chão. Quando olho para trás pergunto como é que fui capaz de aguentar aquilo… eu não queria dar o braço a torcer, não queria voltar para casa dos meus pais e assumir o falhanço do meu casamento. E, afinal, quem iria acreditar que ele era assim ? Fora de casa era amoroso, simpático, dava-se com toda a gente… o mais certo era pensarem que eu andava a fazer alguma para o tirar do sério… Mas um dia decidi que já chegava; saí de casa para levar os miúdos à escola e já não voltei. Saí do meu palácio –prisão e fui dormir para um quartinho alugado em Odivelas. Comecei a tratar do divórcio e foi aí que ele me procurou e ameaçou com uma pistola. Não sei onde fui buscar a coragem mas olhei-o nos olhos e disse-lhe que ele já me tinha feito tanto mal que não era uma pistola que me metia medo. Disse-lhe que sempre o considerara um cobarde por tudo o que ele me tinha feito ao longo dos anos. Podia ter morrido ali; mas acho que o meu olhar , a minha voz e a minha atitude afirmavam a minha convicção: eu estava decidida a mudar. ”
Maria, 51 anos, Lisboa

Ouvir Maria falar sobre os 29 anos que passou ao lado deste homem é, só por si, uma tortura. Os momentos que vai conhecer, foram todos vividos, sofridos, escondidos. Alguns testemunhados. Muitas vezes pelos filhos; que também os sentiram na pele e na alma.
São relatos de violência doméstica feitos por esta Maria.
Por outras Marias.
A Maria que tem dinheiro e a Maria que não tem; a Maria que trabalha na fábrica ou na lota mas também a que é contabilista, designer ou socióloga; a que foi à escola e a que sempre viu o pai bater na mãe…
Chamar “Maria” a todas as mulheres cujos depoimentos recolhemos tem um propósito: estão em pé de igualdade perante uma situação que lhes viola direitos básicos consagrados na Constituição Portuguesa, defendidos pela legislação nacional.
Estas mulheres são vítimas de violência. Fora e dentro de casa.
O fenómeno em si está claramente identificado e é ( ou pelo menos devia ser) reprovado socialmente.
No entanto permanece. A violência é desvalorizada. A primeira chapada é sempre sem querer. Mas repete-se. Geração após geração. De Maria em Maria.

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá Fernanda
Li o seu livro que adquiri recentemente. Em primeiro lugar os meus parabéns pelo rigor científico do estudo; em segundo lugar o meu agradecimento em nome das marias que, não raras vezes, fomentam inconscientemente essa violência, quer pela não divulgação dos seus tormentos, quer pela desinformação dos seus direitos.

O problema ganha complexidades acrescidas sobretudo porque vivemos numa sociedade de desinformação e de temeridades familiares e sociais que exigem estratégias mais "abrangentes" e "populares".

Como profissinal que é da televisão, dei-lhe pessoalmente duas dicas que teriam grande impacto em minorar o degradante problema da violência. Relembro: sendo grande parte das mulheres vítimas desinformadas e consumidoras incessantes de televisão criar pequenos episódios em "forma de novela", "casos de vida", ou até "caricatura" em horário nobre proporcionaria uma melhor conceptualização das consequências pessoais e sociais desse cancro da nossa sociedade.

A vitimização em nada concorre para a independência do pensamento e coarta, por conseguinte, os modos de actuação e de raciocínio das vítimas.

Há que fazer uma pedagogia adequada aos perfis da(s) vítima(s) e dos agressores, que sem ser intelectualista, nem demagógica, seja abrangente, acessível e ilustrada com factos reais e nomes reais ou ficcionados.

E não esquecer que a agressão psicilógica, tão típica do(a)s mais informado(a)s é a mais aniquiladora da pessoa.
Continue nessa luta. Apoiarei.

SG